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Foto do escritorFrancisco Cavalcante

Nada será como antes

Atualizado: 21 de nov. de 2022

Acreditar que Jair Bolsonaro apeado do poder terá a mesma capacidade de liderança e a mesma desenvoltura no uso dos algoritmos que exerceu desde a campanha de 2018 até agora é não entender a natureza do fenômeno da polarização política e sua necessidade de encontrar e produzir novos entes de representação.


POR

CHICO CAVALCANTE


As ideias por trás do que convencionamos chamar de bolsonarismo - as ideias fascistas - são persistentes, muitas delas seculares, e seguirão existindo, mas em grande medida esse "espírito que anda" buscará novos corpos para habitar. Como na fantasia de terror de Guillermo Del Toro, The Strain, o mal se propaga como vermes que saem de corpos deteriorados para corpos em melhor estado. E assim será.

Nessa perspectiva veremos a vanguarda atual do bolsonarismo se desagregar em um tempo mais curto do que sugere o alarmismo de plantão, sobretudo porque ela não é orgânica, é ocasional. Está acéfala, perdendo seu comando central e vendo se esvaírem os campos de interesse comuns que se nutriam fartamente do estado brasileiro.

De um lado, as corporações “evangélicas”, fortíssima base desse movimento e de sua propagação, se tornaram grandes oligopólios dependentes do estado, seja do financiamento direto para os negócios que operaram, como o agronegócio, onde investiram, seja através dos canais de TV ou convênios com estados e municípios. De outro lado, a chamada base parlamentar “bolsonarista” tão alardeada na imprensa será, em sua absoluta maioria, cooptada pelo giro da máquina do novo governo, porque no Brasil o parlamento “ideológico” corresponde a menos de 15 por cento das cadeiras. O restante está ali para gestar os negócios da família, como destacou recente levantamento feito pelo The Intercept Brasil, ou para sustentar os canais de lobbies mantidos pelos patrocinadores de candidaturas e campanhas.

O desenvolvimento capitalista das formações econômico-sociais da América Latina é condicionado pelo movimento do capital nos países imperialistas, sim, mas essa lógica se inverte dialeticamente no espaço nacional, onde o mercado torna-se dependente crônico dos subsídios, dos repasses, das políticas, dos decretos e das benesses gestadas no estado. Por isso surgiu na América Latina, e não na Europa ou na Ásia, a máxima “se há governo, sou a favor”.

A relação entre estado e mercado é de pressão e contrapressão, mas até o rentismo brasileiro, que tem forte voz de comando no planeta, no Brasil não se sustenta sem a mão visível e escancarada do estado, seja garantindo indecentes patamares de juros seja alterando o câmbio a serviço dos interesses do capital volátil, seja mantendo leis que garantem sua predominância, ganância e expansão. O agronegócio e o setor industrial também dependem do estado, por múltiplas vias.

Então seguir na “oposição radical” ao novo governo não será tarefa de tantos. Nem será tão fácil. Na verdade, não será levada a cabo senão como pressão em busca de amparo. O esgarçamento só acontece quando os governos demonstram publicamente sua fragilidade e desagregação, o que não será o caso de Luís Inácio Lula da Silva e do campo que ele galvanizou.

Ex-ministro de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas foi eleito governador de São Paulo e é apontado por boa parte da imprensa como o senhorio que abrigará o bolsonarismo despejado do conforto do planalto. Isso é improvável. Burocrata egresso do governo Dilma e habitué da máquina pública, Tarcísio se adaptará ao novo modo de vida como um peixe que muda de aquário. Os perigos com os quais devemos lidar não virão dessa relação recíproca entre estruturas e máquinas ou entre personagens rotulados anteontem, mas da forma como a aliança ampla que levou Lula ao poder pela terceira vez se manterá ao longo do tempo e resistirá a suas próprias contradições. O segredo do sucesso será a gestão política. Quanto mais eficiente o novo governo se mostrar nessa esfera, menos chances teremos que ver galvanizado um campo conservador tão amplo quando o que vimos surgir alimentado pela lava-a-jato e pelos interesses estrangeiros, resultando no golpe de 2016, de triste memória.

Acreditar que Jair Bolsonaro apeado do poder terá a mesma capacidade de liderança e a mesma desenvoltura no uso dos algoritmos que exerceu desde a campanha de 2018 até agora é não entender a natureza do fenômeno da polarização política e sua necessidade de encontrar e produzir novos entes de representação. O que estou dizendo não é que as ideias que animam o bolsonarismo não precisam ser combatidas ou que não precisamos repensar nossos tantos erros de 2002 até aqui, ou mesmo que isso não se constitua um sério perigo para a democracia e sobretudo para a esquerda e sua agenda. O que afirmo é que os atores do próximo embate não serão os mesmos que visualizamos agora; eles mudarão. Como o próprio campo de batalha deve mudar.

O susto que o país tomou logo após as eleições com a precipitação de dezenas de manifestações intervencionistas pedindo golpe de estado e fechamento das instituições enquanto brandiam “pela liberdade”, é parte da efervescência patrocinada por uma trilionária e centralizada máquina de propaganda que agora não estará mais nas mãos da horda fascista. A rápida defecção da nefasta Jovem Pan mostrou que esse campo não é tão coeso quando se supunha e que a ideologia para eles tem um preço.

O ativismo golpista vive em um mundo paralelo onde os fatos não têm qualquer importância. Para eles a notícia é verídica ou não a partir da fonte que a emite. São os elos de confiança do grupo, que se criam socialmente entre os membros de uma seita, que atestam se cachorro será ou não incluído na dieta dos votaram em Lula. Nesse sentido não estamos combatendo um grupo político, uma “ideologia” (um conjunto organizado de ideias e apreensões, uma lógica causal apoiada em dados ou fatos). Na ala de graves do bolsonarismo, o que enfrentamos é uma seita messiânica que se expressa através da política e que seguirá existindo, agora fragmentada, sem a centralização e o pesado investimento que resultaram em volume e unidade de discurso. Esses grupos existem em muitos países e em geral seguem sua existência cinza em um submundo institucional de teorias da conspiração e canais exclusivos de onde não conseguem sair.

A dialética nos ensina que tudo muda, que nada permanece igual a si mesma. A liderança pessoal de Bolsonaro sucumbiu à sua falta de senso de localização e está prestes a perder o prazo de validade, inclusive porque sua base radicalizada logo perceberá que foi deixada para trás. A família a qual Bolsonaro se referia era somente a dele. E as pessoas que estão nas ruas e nas redes logo precisarão de novos líderes, que habitem suas mentes como os vermes de The Strain.


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Chico Cavalcante é jornalista, publicitário e porta-voz da Rede Sustentabilidade no Pará

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